Vilmara Fernandesvfernandes@redegazeta.com.br
O bebê era encantador. A mãe mal continha a alegria ao segurá-lo pela primeira vez. Mas a emoção daquele momento foi marcada pela reação da enfermeira: "Seu filho é lindo, nem parece seu". Cláudia de Paulo tem a pele preta; e o pequeno Francisco, branca. O que aconteceu à família confirma o que 63% dos brasileiros já vivenciaram: a cor da pele influencia na vida.
O impacto é maior no trabalho, segundo apontaram 71% dos entrevistados em pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada ontem. Feito em seis Estados, o estudo não inclui o Espírito Santo.
Na pesquisa, brasileiros apontaram que a cor e a raça interferem "na relação com a justiça ou a polícia", citada por 68,3% dos entrevistados. Para 65%, esses fatores também repercutem no convívio social; e para 59,3%, cor e raça influenciam na maneira de agir nas escolas.
Orgulho Algo que Cláudia, hoje coordenadora da Associação Capixaba de Redução de Danos (Acard), conhece bem. Até os 15 anos, ela tinha vergonha de ser negra e odiava a escola. "Colegas me chamavam de fedorenta, de macaca". A situação mudou quando conheceu a cultura negra e seus direitos. "Tenho orgulho do que sou e é o que ensino a meu filho", frisa.
O preconceito contra cor e raça vai muito além das diferenças sociais e econômicas. Atinge empresários, aposentados, estudantes, pobres e ricos. "Só quem já vivenciou sabe o impacto de uma atitude racista em sua vida", assinala o juiz Willian Silva.
Contra parede
O advogado do Movimento Negro, Gilmar Martins, é outro que acumula relatos. Na adolescência, não faltaram ocasiões em que foi colocado contra a parede durante blitze policiais. "Era sempre o suspeito", relata.
O pior, destaca Martins, é que nem sempre a pessoa discriminada consegue denunciar a violência de que foi vítima. Nas delegacias, assinala o jurista, na grande maioria das vezes os delegados optam por dar uma qualificação menor ao crime.
Injúria São os casos em que a atitude preconceituosa é apontada como injúria qualificada. Embora haja a previsão de reclusão para quem cometeu o crime, é possível pagar fiança e sair da cadeia.
Já no crime de racismo não se aplica fiança. O acusado pode ficar detido até 3 anos, e a ação na Justiça é movida pelo Ministério Público; ao contrário da injúria, onde a pessoa tem que acionar um advogado. O que falta, pondera Martins, são os delegados se informarem melhor sobre a legislação.
Em Vitória, quatro denúncias por anoBrunelli Duarte
Nos últimos sete anos, a Gerência de Políticas de Promoção de Igualdade Racial de Vitória registrou 30 casos de racismo, uma média de quatro por ano. São situações motivadas pela discriminação no comércio e até no atendimento em hospitais. Mas o número de casos contabilizados não reflete a realidade, porque muitas pessoas não registram queixas nas delegacias.
São casos como o de um adolescente proibido de entrar num hipermercado, porque estava descalço; ou de uma mulher cujo filho foi proibido de brincar num espaço de diversão com o argumento de que o local estava fechado; ou da senhora que estava bebendo num bar com as amigas e foi expulsa do lugar. Todos tinham em comum o fato de serem negros.
Segundo a gerente do setor, Vanda de Souza Vieira, são exemplos da "não aceitação de que o outro - no caso a pessoa discriminada - é um igual, que tem a mesma potencialidade e direitos". Ela acrescenta que o preconceito caminha com a pigmentação da pele. "Quanto mais preta, maior a discriminação", explica ela. Um quadro que só vai se mudar com políticas que impeçam atitudes racistas.
Aos que vivenciarem essas situações, Vanda orienta que registrem um boletim de ocorrência.
"Pessoas até me olhavam de lado"
Uma das situações que mais marcaram a vida da manicure Edna Rezende, 33, envolveu sua filha, ainda criança. Apesar de sua pele preta, a menina nasceu branca, com olhos azuis, características herdadas de familiares. Uma vez, quando fazia compras no supermercado, uma pessoa se encantou com a criança, parou para observá-la e questionou o que Edna ela era da menina. "Percebi que ela ficou espantada com a minha resposta. Sei que muitas pessoas olhavam de lado quando a gente saía na rua. O preconceito é nítido, mas procurei não ficar revoltada com esse tipo de situação", diz.
"Acharam que eu poderia assaltar"Angelo Dias. Vendedor de picolé
O vendedor de picolé Angelo Miguel Dias, 55, sempre morou no Centro de Vitória. Nas horas de folga, passeia pelo local, e, numa dessas voltas, há cerca de dez anos, parou em frente a uma loja e olhou a vitrine. Logo percebeu que uma das funcionárias do estabelecimento pediu para a
outra fechar o caixa. E pior: um dos funcionários chegou a mexer em uma arma dentro da loja. "Fiquei constrangido com o preconceito. Acharam que eu poderia assaltar a loja. Mas fiz questão entrar e falar com o gerente sobre a situação. Toda semana alguém segura a bolsa na rua quando me vê."
"A visão é de que negro não pode ascender" Roberto Carlos. Deputado estadual do Espírito Santo
O deputado estadual Roberto Carlos (PT) é professor e adora comprar livros. Mas é comum ser confundido com um vendedor nas livrarias. "É a visão de que o negro não pode ascender na sociedade", destaca, acrescentando ainda que boa parte da população carcerária e dos moradores de rua é formada por negros e pobres. Por causa dessa realidade, um de seus projetos na Assembleia Legislativa do Espírito Santo propõe que as propagandas do governo respeitem a distribuição étnica. "Mais da metade da população do Estado é negra, mas nos comerciais só aparecem os brancos", frisa ele.
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