segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Violência de gênero deve ser considerada indicador de morte materna

Mortalidade materna e violência contra a mulher são dois dos temas mais abordados pelo movimento de mulheres na América Latina e Caribe. Com taxas entre as mais elevadas do mundo, a morte materna produz, segundo inúmeros estudos, 92 vítimas para cada 100 mil nascidos vivos no Brasil , constituindo-se numa injustiça social, um grave problema de saúde pública e uma violação aos direitos humanos das mulheres. Já a violência de gênero contra as mulheres atinge no Brasil uma mulher a cada 15 segundos segundo inúmeros estudos . Em Pernambuco, nordeste do Brasil, uma mulher é assassinada a cada dia segundo estudos do Observatório da Violência do SOS Corpo, o que tem levado a que se estude com maior profundidade a ocorrência de femicídios também neste País, a exemplo do que vem ocorrendo no México, na Guatemala e regiões da Argentina. Mulheres estariam sendo atacadas e mortas pelo simples fato de serem mulheres, independentemente de idade, cor, religião e cultura.

Qual a relação entre esses dois fenômenos, violência e mortalidade materna é um estudo em aberto não só no Brasil, mas em toda a América Latina e Caribe. Várias investigações relacionaram violência e gestação e violência na gestação, no entanto sua ligação direta ou indireta como causa de morte das mulheres no período considerado como de mortalidade materna continua sem a devida abordagem.
Incluir a violência doméstica como um indicador de morte materna é um dos objetivos da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Brasil. A proposta foi apresentada em dezembro de 2007 à Reunião da Coordenação do Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, da qual faz parte, tendo sido indicada como uma das linhas de investigação a ser patrocinada pelo Ministério da Saúde. No momento se desenvolve com áreas do ministério a discussão sobre a amplitude da pesquisa e a possibilidade de se estabelecer dois níveis de abordagem, o de percepção do fenômeno e o de comprovação empírica do mesmo, através de evidências científicas.

Para se ter idéia da magnitude do problema, na cidade de Porto Alegre, região sul do Brasil, com os mais altos índices de desenvolvimento humano (IDH) e mais baixos índices de morte materna, no ano de 2002 o Comitê de Prevenção e Estudos sobre Mortalidade Materna constatou a ocorrência de 11 mortes de mulheres por assassinatos, sendo a segunda maior causa isolada de morte no período. Este dado, no entanto, não foi incorporado ao Relatório Anual de Morte Materna do Comitê Municipal porque esta é considerada uma “causa externa”. Soma-se aos tantos eventos da vida cotidiana, pública ou privada, como acidentes, atropelamentos, bem como suicídios, deixando de ser tratado como fator de risco à vida sexual e reprodutiva das mulheres.

Compreendendo a mortalidade materna como óbitos ocorridos no período entre a gestação, parto e 42 dias pós-parto, e mortes tardias até um ano após o parto, ocorridas por razões direta e indiretamente ligadas à gestação, as doenças não ligadas à gestação e parto, como problemas cardíacos, câncer e Aids são consideradas como causas indiretas; eclampsia, infecções pós-parto, abortos e hemorragias são consideradas causas diretas. Essas mortes podem ter como classificação "evitável" ou "inevitável", e a subclassificação (opcional) refere-se à esfera clínica e/ou social Assim, uma morte pode ser socialmente evitável, mas clinicamente inevitável e vice-versa. Mortes violentas provocadas por acidentes, homicídios e suicídios não integram o conjunto de causas maternas, sendo consideradas causas externas. Segundo o Estudo da Mortalidade de Mulheres de 10 a 49 anos, com Ênfase na Mortalidade Materna (MS, 2007, p. 49) ...”Tais causas corresponderam a importante parcela dos óbitos de mulheres de 10 a 49 anos no conjunto das capitais brasileiras”, cerca de 15,5% , variando entre 12,1% a 18,9%, de acordo com a região analisada, terceiro posto no total das capitais analisadas e segundo lugar na região Centro-Oeste. O homicídio surge como principal causa no grupo, com 39,2%, o que por si só seria relevante se as pesquisas sobre violência não indicassem que a absoluta maioria, quase a totalidade dos assassinatos de mulheres ocorrem no âmbito doméstico e/ou familiar, promovido por pessoas de relações de afeto.


VIOLÊNCIA E GESTAÇÃO

No Brasil vários estudos já relacionam violência de gênero e gestação, não incluindo, entretanto, dados de mortalidade materna. Entre as investigações realizadas entre 2001 e 2006, destacam-se o estudo Violência Física Doméstica e Gestação: resultados de um inquérito no Puerpério, coordenado por um grupo de pesquisadores numa maternidade no Recife (Pernambuco), incluindo 420 mulheres. Encontrou-se prevalência de violência física de 13% antes e durante a gravidez em forma de empurrões, tapas e manchas roxas, e uma associação destas violências com fatores de vulnerabilidade, como baixa escolaridade da mulher, tabagismo e história de violência familiar anterior. A precária condição sócio-econômica, falta de acesso a recursos sociais, família numerosa e menor cuidado com os filhos esteve presente em quase todas as histórias mapeadas, e como conseqüência da violência na gestação um elevado número de mortes neonatais em função do deslocamento da placenta. Segundo o estudo, o estresse continuado durante a gestação predispõe a esse tipo de patologia e de sofrimento às mulheres.
Os dados relativamente baixos de prevalência de violência encontrados no estudo, se comparados com outros trabalhos internacionais, como os de Canterino (1999) e Purwer (1999) – 36% e 22 a 25% respectivamente – estariam ligados à metodologia da pesquisa. O estudo de Pernambuco entrevistou as mulheres no período puerperal, quando se pressupõe que contemporizem e relevem as violências por parte dos companheiros como meio de não perdê-los, mantendo-os como co-responsáveis pelo filho recém nascido. “Uma espécie de barganha”, segundo os autores, que admitem ter obtido resultados abaixo do real. A situação de pobreza, de baixa escolaridade, enfim, de desigualdade social, seria fator de banalização da violência de gênero pelas mulheres.
Outra investigação envolvendo 1123 mulheres grávidas atendidas pelo Programa de Saúde da Família (PSF) de um distrito da cidade de Recife (Pernambuco) pretende analisar as conseqüências da violência na gravidez e no pós-parto para a saúde das mulheres. Coordenado pelas médicas Sandra Valongueiro (integrante da Rede Feminista de Saúde), Ana Bernarda Ludemir e Thália Barreto, todas vinculadas à Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco, a pesquisa Violência na gravidez – determinantes e conseqüências para a saúde reprodutiva, saúde mental e resultados perinatais, demonstrou que 29% das mulheres sofreram violência durante a gravidez. Embora durante a gestação não tenha havido aumento das agressões, ocorreu mudança na sua forma, diminuindo a violência física e aumentando a psíquica. Este estudo ainda está em curso, devendo trazer importantes subsídios para a discussão que se propõe.

Focando 1922 usuárias entre 15 e 49 anos da cidade mais populosa do país, o estudo Violência na gestação entre usuárias de serviços públicos de saúde de São Paulo – prevalência e fatores associados - as médicas Julia Garcia Durand e Lilia Blima Schraiber (Faculdade de Medicina da USP) partiram de cifras já existentes de violência de parceiro íntimo de 7,4% a 18,2% na forma física e de 61,7% na violência psicológica. As autoras chamam a atenção para os elevados riscos de morrer por homicídio completo destas mulheres, que segundo estudos feitos por McFarlane (2002) é três vezes maior entre as mulheres que sofreram violência na gestação do que as que sofreram violência em qualquer outro período da vida. Esta investigação se baseou em material coletado para conhecer a dimensão da violência contra as mulheres em geral, sem enfoque específico, daí porque se tenham encontrado cifras não tão elevadas, segundo explicam as próprias autoras. Elas consideram que a taxa de 32% encontrada no México (Castro e Ruiz, 2004) entre usuárias de serviços seja a mais próxima da realidade por ter como objetivo específico a violência na gestação. 



PAUTANDO NOVAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Os três estudos aqui brevemente evidenciados demonstram que a violência contra as mulheres durante a gestação e o puerpério, período considerado para as estatísticas e estudos sobre morte materna constitui um grave problema de saúde pública. Tendo entrevistado mulheres na gestação e pós-parto, por óbvio apenas deram indicativos dos riscos sofridos por essas mulheres.


Já as estatísticas de mortalidade materna por violência que se pretende construir darão a dimensão final do impacto de tais violência neste período particular da vida das mulheres, forçando a que se reconsidere os assassinatos de mulheres como indicador de morte materna. Estes dados também propiciarão subsídios para a elaboração de novas políticas públicas de prevenção da violência de gênero na gestação e puerpério, a inclusão de novas questões nas anamneses do pré-natal, bem como a valorização do direito à anticoncepção de emergência e do aborto terapêutico, bem como para a ampliação dos causais do aborto, incluindo-se a vulnerabilidade para a violência e o risco de morrer.


Esta é uma luta considerada bastante desafiadora pela Rede Feminista de Saúde, pois implicará em sensibilizar estudiosos e gestores de políticas públicas sobre a relação entre violência de gênero e risco para a saúde sexual e reprodutiva e alterar para cima os números de morte materna justamente quando se pretende mostrar que estão caindo. Como se sabe, o Brasil tem o compromisso de reduzir as mortes maternas para cumprir as Metas do Milênio, e para tanto construiu importante estratégia, o Pacto, que só se viabiliza se houver a adesão de estados e municípios e o comprometimento da sociedade. A redução dos números não tem sido uma tarefa simples, pois implica em desconstruir inúmeros mitos que envolvem a morte de mulheres nesta etapa da vida, inclusive sua “missão materna sagrada”. Ademais, as restrições ao aborto no Brasil, por si só uma violação de direitos humanos, mantém uma névoa sobre o tema, na medida em que sua abordagem concreta implica em reconhecer os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Assim, também o aborto clandestino e inseguro impedem a queda da razão de morte materna, pois em sendo o planejamento reprodutivo sujeito a falhas, nem sempre acessível e seguro, em especial para mulheres vivendo em situação de violência, a ocorrência de abortos se torna previsível.


Diante das difíceis circunstâncias em que se trabalha, talvez seja necessário trabalhar com dois tipos de análise, aquele que se considere a violência e outro não, o que propiciará, mais uma vez, uma demonstração cabal do peso deste fenômeno como fator de saúde, adoecimento e morte das mulheres, ou seja, a negação dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Ter-se-á, entretanto, a dimensão real do fenômeno da morte de mulheres, uma reavaliação da morbidade neste período, o impacto da violência física e psíquica na gestação e puerpério. Segundo as pesquisas aqui assinaladas, a morbidade neonatal é elevada entre essas mulheres, um sofrimento a mais, uma violência emocional evitável. Políticas preventivas poderão melhor focar seus objetivos, aproximando-se mais da vida concreta das mulheres.
 
Fonte: http://www.redesaude.org.br/NOTICIAS/28mai/indicador.htm
 
1-TANAKA, A.C. & MITSUIKI, L. Estudo da magnitude da mortalidade maternal em 15 cidades brasileiras. São Paulo, Unicef, 1999
2-A Mulher Brasileira no Mundo Público e Privado, Fundação Perseu Abramo, 2002
3-Telma Cursino de Menezes, Melania Maria Ramos de Amorim, Luiz Carlos Santos e Aníbal FaúViolência Doméstica Durante a Gravidez, C.L. Moraes e ME Reichenhein, Rio de Janeiro, 2002
4- Violência Doméstica Durante a Gravidez, C.L. Moraes e ME Reichenhein, Rio de Janeiro, 2002.

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